sábado, 9 de abril de 2016

Eu mesma - pedido de desculpas


Olá, queridos leitores!
Peço desculpas pela ausência de ontem.
Assumi uma tarefa nova e esta tem-me deixado louquinha. Voltei para a Universidade e são muitas as tarefas diárias.
Por isso farei, publicações mais espaçadas por um tempo.
Não me esquecerei de vocês.
Obrigada pelo carinho!
Antonieta.

sexta-feira, 1 de abril de 2016

Sofia e as questões de vida e morte de Severino


Encontrei-a no domingo, quando ia ao enterro do amigo Severino Paes de Almeida. Há tempos não nos víamos.
Ela quis conversar. Venha, vamos ao velório de um amigo. Não podia me atrasar. Fora escolhida para fazer o discurso de despedida. Não gostei muito, mas não tive saída.
Entrou no carro e começou a contar de um caso novo, um sujeito nordestino, meio estranho. Ele me faz subir pelas paredes, caminhar no teto, flutuar nas nuvens e mais um monte de coisas inacessíveis aos mortais comuns. Estava em transe. Uma verdadeira descoberta arqueológica. Um espécime em extinção, disse ela. De sexta para sábado passei a noite com ele. Deixei-o dormindo ainda quando fui embora. Nos veremos hoje, de novo.
Falou como pobre na chuva até chegarmos ao salão onde se fazia o velório.
Havia muita gente, pois era uma pessoa muito querida. Eu acabava de chegar de uma viagem de meses ao exterior. Antes disso ele já andava um pouco afastado, falava pouco e escrevia muito. Um livro após outro.
Como acontecera? Não tivera tempo de me informar, por isso queria chegar um pouco mais cedo para conversar com Ana, uma amiga comum. Estivera mais próxima dele nos últimos tempos.
Entramos e fomos direto dar uma olhada no meu velho e querido amigo fujão. Ousou ir embora assim de repente me deixando ainda neste caos. E o nosso combinado de irmos juntos, numa sexta feira, para que os amigos tivessem tempo de festejar bastante?
Todos cantavam as nossas velhas canções preferidas, declamavam poemas e bebiam um bom vinho.
Quando Sofia olhou dentro do caixão e viu Severino ainda com um leve sorriso nos lábios frios, revirou os olhos e caiu como uma calda sobre o sorvete e escorreu para o chão.
Todos acudiram e a levamos para fora. Não dizia uma palavra, apenas tremia e olhava para um ponto no vazio. Quis ir embora.
Entrei e procurei Ana, pois mais que nunca queria saber a causa da morte do nosso amigo.
Ela então me contou. Já havia alguns dias, ele escrevia menos. Sentíamos cheiro de namorada nova. Às vezes aparecia no nosso velho bar de sempre, para o bolinho de bacalhau que só o Lira sabe fazer. Falava pouco, apenas sorria, como a lembrar-se de algo muito interessante. Despedia-se e ia para casa.
No sábado, como sempre, a faxineira chegou às nove, preparou o café e foi chamá-lo. Ele estava na cama, com aquele mesmo sorriso. Ela chamou mais alto. Ele não respondeu. Insistiu, chegou perto e percebeu que o frio tomara conta daquele ambiente. Correu ao telefone e chamou o primeiro nome da lista, Ana.
Eu trouxe um médico e, após examiná-lo atentamente, ele disse, com um leve tom de inveja: morreu de amor.
Como assim?
Simples, o coração não aguentou uma noite intensa e ele teve um infarto. Olhe a sua volta.
Ana, você descobriu quem era a mulher?
Não, ninguém sabe.

Olhei para Severino frio no caixão e lhe pisquei um olho. Ninguém saberia.

sexta-feira, 25 de março de 2016

Beatriz


Lembras como tudo começou? Como era clara a luz naquele dia? Era abril, como sempre convém. Em abril os sentimentos se libertam em meu peito e saem por aí, correndo como crianças na hora do recreio. Às vezes, ao sair, eles tropeçam uns nos outros e se machucam, choram. Alguns são sapecas, alegres e saem saltitando entre as pessoas, fazendo brincadeiras, pregando peças. Outros são tão delicados, acanhados, e qualquer estranheza faz doer. O amor doía dentro de mim como o pisar em brasas na fogueira. Não se sente, no momento. Eu não sentia, até aquele dia. A luz do sol atravessava os ramos como a flecha. A mata se alegrava com o calor ainda presente no ar e estremecia com a brisa, prenúncio de frio.
Segui um raio de sol e meus olhos caíram sobre o teu vulto. Assustei-me com a luz naquele momento. Havia um brilho especial, algo de encantamento. Despejei-me sobre a vida, como a chuva depois de um dia abafado. Era véspera de festa. Tudo era luz e cor. Vivi assim, entre os pingos da chuva e os raios do sol. Alimentei o amor com a essência da alma. Guardei cada gesto, cada palavra, como pequenas pedras preciosas.
O tempo escorreu entre os dedos, a alegria desistiu de sua morada em meus olhos, deslizou em pequenos veios líquidos e desceu pelos cantos da boca. Senti-lhe o sal, com leve tom amargo entre os cristais ressecados.

Cilindros de fumaça giravam a névoa do tempo. Tudo se degradava ao toque. Lembro-me da mulher de Jó olhando para trás. Vaguei na floresta humana atravessada entre nós. Era a solidão apanhada de surpresa. Mergulhei nos rios de puro sangue, onde peixes vorazes consumiam meus sonhos. O ar cheirava a enxofre das palavras condenadas, desprendidas de bocas impuras, maltratadas. O livro de uma vida escrito em névoa, diluído. Passo com força a borracha sobre tudo que não foi por falta de existir. Esvazio meu ser dessa insubstância aquosa, rala, que julguei ser algum tipo de amor.  Reduzo-te ao ponto inicial, insignificante, que eras antes do devir. Nada havia lá. Só ilusão.                                     

sexta-feira, 18 de março de 2016

Inês


São seis horas da manhã de um dia qualquer. Inês acorda com o barulho de unhas na janela. Sacode o sono, levanta, vai até a sala e lá está ele grudado no vidro da porta. Conecta o pensamento na realidade. Onde, quando, quem. Hoje, amanhã, talvez. Ou já foi. Sobressalto, ar queimando em direção aos pulmões. Mais difícil devolvê-lo. E as unhadas se repetem intercaladas por voos silenciosos em volta da casa, pousando aqui e ali. Olha para ela e retoma seu trajeto curto e insistente. Acende uma vela, faz uma oração pelos filhos. Amigos. Parentes. Calma, essas coisas não são bem assim como lhe disse a avó. Era uma mulher sábia, curandeira. Conhecia os segredos da Natureza. Contava-lhe histórias e lendas como a da cobra preta que punha o rabo na boca da criança recém-nascida e mamava o seu leite enquanto a mãe dormia.

Inês não é assim. É apenas uma mulher comum, não sabe nada dos mistérios da vida e não quer saber. Tem medo de alma, de assombração. Cuida de sua vidinha e pronto. Está de bom tamanho. Mas anda percebendo alguns sinais. Pássaros agourentos cantam perto de sua casa, borboletas entram e pousam em sua mão. Se algum bicho peçonhento se aproxima, assustada manda embora e eles viram-se e vão. E ela diz, toda prosa, ora, eles sabem quem manda aqui. Agora é isso. Um pássaro enorme agarrado à porta. Dá voltas, pousa de um lado, do outro e vem à porta novamente. Antes de tomar o café, ela decide sair. Zenilda mora em um sítio próximo e deu à luz há poucos dias. Está ainda na cama, com algumas complicações. Ninguém sabe o motivo.  O marido trabalha na roça e Inês vai todos os dias, preparar o almoço e cuidar do bebê. Melhor ir logo cedo hoje, assim ficará longe do pássaro insistente. A casa é de taipa. A porta da cozinha é fechada apenas com meia porta de tábuas irregulares. Para os porcos e galinhas não entrarem. Por ali não há grandes perigos. O cachorro da casa está agitado, do lado de fora, e vem ao seu encontro e volta para a porta algumas vezes. O marido já se foi para o trabalho. Inês entra correndo, já o coração apertado. Apanha uma faca na cozinha, a vassoura, e entra no quarto. Custa a sustentar-se nas pernas diante da cena. Segura o grito na garganta seca. É preciso cautela. Zenilda dorme, com a camisa aberta, e o bebê dorme ao seu lado, após a mamada. Já com metade do corpo reluzente sobre a cama, ela vê a enorme cobra preta.

sexta-feira, 11 de março de 2016

Isolda


Fiz o trajeto entre a igreja e a praça umas dez vezes. Olho cada canto e não a vejo. Olho o relógio no alto da torre. São oito horas. As badaladas ainda ressoam no ar. Tudo bem, cheguei cedo.  Sempre faço isso e fico aflita quando as pessoas que espero não são pontuais. Agora tenho mais pressa ainda e ela não chega. Abro a bolsa para pegar um cigarro e lembro-me de tê-los jogado na lixeira do consultório. Levo a unha à boca e desfaço o gesto, assustada. Não, não vou começar outro vício agora. Algumas crianças brincam ainda enquanto as mães conversam uma coisa e outra para passar o tempo. O resfriado de um, a queda de outro, uma viagem repentina do marido, a empregada não limpou direito. Chego a invejar aquela simplicidade. Minha cabeça ferve com assuntos graves e elas falam do preço da carne. Nem sei se estarei viva na próxima vez em que forem ao açougue. Chuto a pedra solta da calçada e volto ao compasso dos passos rumo à igreja. A missa terminou. As pessoas saem aos pares, aos bandos e sinto um ombro chocando com o meu. Desculpa. Não foi nada. Nada mesmo? Você está pálida. É a luz da rua. Não, deve ser algo sério. Sou médico, deixe-me ajudar. Olho para um lado e outro e avisto Claudine acenando da praça. Minha amiga chegou, obrigada. Leve meu cartão. Atravesso a praça correndo e isso traz alguma cor ao rosto. Ela quer saber o motivo de tanta aflição e não sei como contar-lhe. São tantos anos de amizade, tantos planos, tantos sonhos. Lembra da nossa viagem a Lisboa? Gostaria de voltar lá para comer aquele bacalhau com natas preparado pelo Manoel Correia. Ele quase não te deixa voltar. E gostaria de ir também à Grécia. Às vezes penso ter perdido um dedinho lá, numa época remota. As crianças estão bem? O Jorge, quando volta? Aquela sua promoção no trabalho, sai ou não sai? Isolda, você tem algo para me contar. Nada importante. Sabe aquele vestido de seda, no Shopping? Comprei. Para que serve o dinheiro? Para realizar desejos. Isolda, olha para mim. Para com isso e conta. Conheço você e tem algo sério acontecendo. Ele foi embora? Desistiu do casamento? E o projeto, como fica? Não, não foi isso. Coloco a mão no bolso e encontro o cartão que o médico me deu há pouco e quase joguei na lixeira da igreja, sem ao menos olhar. Leio em voz alta. Doutor João Carlos Freitas. Oncologista.

sexta-feira, 4 de março de 2016

Marlene

Ando pelas ruas como autômato, segura pela mão que me guia. Viro as esquinas desconhecidas e me deixo conduzir aos becos forrados de lembranças ancestrais. Sim, há uma memória de mim entranhada em cada fresta desta cidade onde me perco e me encontro. As pedras reconhecem meus passos e se alongam num abraço de boas vindas.
Passo desconfiada, esgueirando-me para não tocar o cotovelo dos que ali passaram há trezentos anos. Não devo perturbar os amantes de hoje e de antes, sentados a um canto.
Estou só. Vejo o amor passar de braços dados, sorrindo de nadas banais. A criança brincando com a sombra na calçada, a folha caindo, o homem e o cão. Flores desabrochando em profusão nestes tempos de primavera. Renova-se a natureza e as lembranças brotam nos meus canteiros mais guardados. Abandonados. Aí renascem não só as flores.
Nosso reencontro foi num outono. Eu não queria ir, bastava uma vista de longe, mas meu amigo insistia. Era preciso ver de perto, por dentro. Era preciso rasgar minha carne, mais uma vez, e lavar aquele chão com novas águas. Aquele lugar tinha o dom de revirar-me as entranhas da alma, de extorquir-lhe até as ultimas gotas.
Descansei, depois, na ignorância dos ingênuos, como se ali houvesse aberto e encerrado as portas do passado, como se faz com um quarto de hotel. Um momento estéril de onde não tiramos nada, nem deixamos.

E agora, na próxima esquina, lá está ela. Toma-me o braço com carinho e diz: demoraste. Espero-te há tempos. Vamos lá, só tu e eu. E me leva para casa, onde me consola com pequenas mentiras de amor fingido. Sal na ferida aberta há tanto, sem cicatrizar. Na meia luz do quarto olho para ela, meio de lado, e pergunto, rápida, para não perder a coragem. Por que vieste tu e não ele? Foi a mim que chamaste, ingrata! Não te lembras?

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

Alice


Segundo os astros, nasci com a sina de estar sempre em dúvida. Sempre com um pé lá e outro cá. Querendo uma coisa e o seu oposto, na mesma intensidade.
Assim, o prazer de partir é o mesmo de voltar. Quero tanto conhecer lugares novos, como me aconchegar no conhecido, no ambiente que reconhece meus hábitos e os acolhe sem pudor.
Para os amigos sou cigana, pelo número de vezes que já mudei de endereço e pelos que ainda estão por vir. É verdade, me mudei umas dezesseis vezes.
As mudanças são oportunidades de faxina, de arrumação, de descarte do supérfluo. Se ficamos muito tempo em um lugar, tendemos a juntar coisas na certeza de precisarmos delas. E aí vêm as caixas e caixas e sempre sobram algumas das quais nos despedimos sem remorsos. Ou com eles. Não cabem mais em nossa vida.
Nunca fui apegada a casas, móveis, objetos de decoração ou livros. Eles passam pela minha vida, assim como as pessoas. Pessoas que amo muito, pessoas que amo pouco, mas que não quero presas a mim. Quero-as no coração, mas livres de pés e mãos.
Com essa disposição de alma, aceitei a ideia de mudar mais uma vez. A casa feita para mim, com cada canto pensado, cada sentimento colado nas paredes para aconchegar o meu ser cansado. Todos se foram. O espaço deixado não aceita estranhezas de recém-chegados. E se fez demasiado. É preciso trocar essa veste alargada pelo tempo. Mais uma mudança.
Tomo pela mão aquilo que pensei coragem e na outra, todos os juntados da vida. Os dedos se crispam na tentativa de levar o que me foi tirado. Choro e sangro essa dor sentida e alheia. O olhar apunhalante me segue nos dias frios e úmidos da solidão compulsória.
Ali, sobre a mesa, ela me olha e chora junto. Apequeno-me para chegar até seu coração em chagas, ofereço a mão, peço-lhe perdão. Deitamos juntas, aquela noite, e ela adormece em paz.
As dúvidas, essas ainda as tenho. São dádivas dos astros. A capacidade de decisão, sinto-a um pouco mais robusta. A bagagem que se leva nos ombros adquiriu algumas preciosas peças, levadas com carinho e leveza, enquanto a mala de mão se torna também mais leve a cada dia.